A Levada da Casa Grande
A
Levada da Casa Grande
Tempos houve, num passado recente, em que
ter uma horta em Oleiros era necessidade imperativa para qualquer família da
vila. Nessa altura ainda não havia supermercados nem lojas onde hoje qualquer
pessoa tem ao seu alcance toda a espécie de hortaliças e de legumes de que
necessita no seu dia a dia. Além das pessoas que viviam da agricultura como
forma de trabalho, também os funcionários públicos, naturais da terra ou oriundos
de fora, nos quais se incluíam os elementos da GNR de serviço em Oleiros,
precisavam de um pedaço de terra para “hortelar”. Tal necessidade resolveu-se,
em parte, com a criação de pequenas hortas ao longo de uma conduta de água, que
a Casa Grande construiu no início do século XIX com o objetivo de irrigar os seus
extensos milheirais situados nas proximidades da vila. Em simultâneo, a energia
hídrica do caudal foi aproveitada para alimentar dois moinhos de cereais, junto
da Fonte das Freiras, na fase final do seu trajeto. Na bacia de alimentação dos
moinhos, a água podia ser desviada, total ou parcialmente, para outra conduta mais
pequena que ia até ao fundo da Quelha do Chafariz (atual Rua Monsenhor Romão).
Aqui, conforme as necessidades, a água era encaminhada para a Salina ou para a
Torna. Neste último caso corria ao lado da Ponte Grande através de uma calha de
cimento armado muito robusta, de paredes delgadas e de esmerado acabamento.
Estas características ainda hoje podem ser confirmadas nos troços que ainda
restam. A “levada”, como era popularmente conhecida, tinha o comprimento total
de 3 km, desde o seu início no Açude Pinto até à Fonte das Freiras.
O topónimo “Açude Pinto” deriva do apelido
dos seus construtores, João Rebelo de Azevedo Pinto e seu irmão Francisco de
Albuquerque Pinto Maldonado, ao tempo, titulares da Casa Grande.
Na sua construção foram utilizados processos artesanais muito primitivos, por falta de acesso a outros meios tecnológicos adequados. Assim, para definir o leito da conduta, desde a represa do Açude Pinto até à boca dos moinhos, a água andava sempre por perto enquanto a levada ia sendo escavada na rocha grauváquica, a fim de garantir o seu fluxo normal. Nesses trabalhos foi necessário resolver problemas de desnível, resultantes do cruzamento da conduta com linhas de água. Ao longo de todo o percurso só uma dessas linhas de água passava por baixo da levada – o ribeiro do Orelhão – no lugar da Pontinha. Para obviar tal dificuldade construiu-se aqui uma estrutura de madeira por cima do ribeiro, que mais não era que uma cale de grandes dimensões, e que, por isso, ficou conhecida por “calão”. Na década de 1930 o calão de madeira foi substituído por uma estrutura de betão armado, por sugestão do professor Sílvio Alves de Sousa, natural de Sobreira Formosa, docente na escola primária de Oleiros e amigo do dr. Francisco Rebelo de Albuquerque, titular da Casa Grande naquele tempo.De facto, o calão de madeira exigia constantes trabalhos de manutenção por ser construído à base de troncos de árvore, pranchas de madeira e terra. A madeira apodrecia e a terra sumia-se com facilidade sendo preciso repô-la de vez em quando. Para facilitar os trabalhos de reposição dos materiais de vedação, a Casa Grande comprou os terrenos contíguos para deles extrair a terra necessária à manutenção da estrutura. Inicialmente renitente à sugestão, o dr. Rebelo acabou por aceitar a ideia do professor Sílvio, que tinha conhecimentos suficientes sobre a matéria, embora de natureza livresca. O dr. Rebelo também era conhecedor da modernidade por ter frequentado a Universidade de Coimbra durante os anos da sua formação académica na área de Direito. Curiosamente, foi a primeira obra em cimento armado construída no concelho de Oleiros, tendo sido olhada com grande desconfiança, por ser considerada insegura.
O problema do desnível nos outros
cruzamentos foi resolvido com a colocação de pontões de pedra sobre a levada,
devidamente vedados com barro, os quais davam passagem aos caudais de águas
pluviais na época invernosa. Em geral estes pontões também eram utilizados para
passagem de peões. Outros foram construídos com a função exclusiva de travessia
de pessoas e de carros de bois: um situava-se na Alverca e outro no Casal.
Ao longo de toda a levada foram plantadas
árvores de fruto com predominância para macieiras, pereiras e aveleiras, de diversas
“variedades”, cuja rega estava garantida de forma natural devido à proximidade
da água da levada não impermeabilizada. Entretanto os terrenos adjacentes foram
aproveitados para a criação de pequenas hortas e outros espaços agrícolas mais
extensos chamados “courelas”. Todos estes espaços (hortas e courelas), foram
arrendados a uma boa parte das famílias da vila, que não dispunham de terra
para fazer face às suas necessidades alimentares. Alguns destes arrendatários
eram aqueles que, com o seu trabalho braçal, mantinham de pé o poder agro-económico
da própria Casa Grande.
Nas
hortas cultivava-se toda a espécie de legumes: feijões, tomates, pepinos,
pimentos, beringelas, cebolas, favas, ervilhas, abóboras, chilas, alfaces e, em
menor escala, plantas aromáticas e flores ornamentais. Nas courelas semeava-se,
durante o verão, milho e batatas e, na época de inverno, nabos e couves.
Como a função principal da levada era a irrigação dos terrenos agrícolas da Casa Grande, esta mantinha para si a utilização exclusiva da água durante todo o dia. Os arrendatários das hortas só podiam servir-se da levada durante a noite, a partir do sol-posto, mais precisamente, quando os últimos raios solares se esfumassem no Vale Peixe, lugar situado na vertente da serra da Lontreira virada a poente, bem visível em toda a vila. Dizia-se então que o “sol ia ao Vale Peixe”. Nessa altura iniciava-se, ao longo de toda a levada, o ritual diário de “ogar” (regar) a horta, oferecendo um espetáculo de miríades de gotinhas de água lançada por “ogadouros” (aguadouros), uns de lata outros de cortiça, munidos de um longo cabo de madeira. A água era retirada diretamente da levada, ou no caso de hortas maiores, era retirada de pequenas poças ligadas por um rego até à borda da levada, para onde era lançada a água com baldes. Estas operações exigiam alguma destreza e rapidez, visto que no pino do verão, em alturas de maior escassez de água, esta podia esgotar-se rapidamente. Alguns mais sortudos tinham o precioso líquido disponível durante mais tempo por terem poças de água no leito da levada, algumas engenhosamente escavadas com esse intuito.
Para evitar eventuais abusos por parte dos
arrendatários, um empregado da Casa Grande – o “guarda” – vigiava ao longo do
dia toda a levada. Apresentava-se de sacho ao ombro, não que a ferramenta
servisse de arma intimidatória, mas servia, isso sim, para resolver problemas de
fugas de água, por vezes maliciosamente desviada nos “boqueiros” por
utilizadores menos escrupulosos. Os “boqueiros” eram as tomadas de água na
levada para regar as courelas. Devido à sua maior extensão, estas eram regadas
durante a noite, havendo necessidade de usar lanternas de petróleo nas noites
em que a claridade do luar era insuficiente.
Anualmente, na primeira semana de julho, a
levada era objeto de uma limpeza geral. No dia estabelecido para tal tarefa,
todos os arrendatários deveriam apresentar um obreiro munido de ferramentas
apropriadas, a fim de retirar da levada a lama acumulada durante um ano, cortar
silvas e eliminar outras plantas invasoras. Era um trabalho coletivo muito
animado. Ao meio-dia servia-se o almoço fornecido pela Casa Grande,
transportado à cabeça por mulheres, em enormes cestos. Era uma refeição à base
de grão-de-bico com abundante carne de porco, tudo acompanhado com vinho da
casa à discrição, o que contribuía para uma maior animação do rancho.
Nas imediações da levada desenvolveu-se um labirinto de trilhos e caminhos, e também algumas serventias, que, por força do usucapião, acabaram por entrar na esfera do domínio público. Está neste caso a última parte da levada, junto dos moinhos, que se transformou numa espécie de lavadouro público. O alargamento do caudal, a sua baixa profundidade e a existência de lajes de xisto a cobrir uma das suas beiradas, facilitavam a sua utilização para lavar roupa. As lavadeiras entravam na água com galochas de borracha ou mesmo descalças, o que exigia alguma agilidade porque não havia degraus para descer até ao leito da pequena represa. Ali passavam algumas horas a desencardir roupa ou passar por água as peças mais leves, funcionando também esse tempo como convívio social durante o qual se transmitiam novidades e se dava largas à coscuvilhice. Na parte de cima deste lavadouro, na escombreira de uma pedreira, estendia-se a roupa a corar ou a secar sobre as pedras ou, no caso de peças mais delicadas, escolhiam-se algumas nesgas de relva limpa para servir de estendedouro.
A remodelação da Estrada Nacional nº 238
(com sobreposição da nº 351) ditou o fim da levada. Com efeito, grande parte
das hortas entre o Casal e a Fonte das Freiras, bem como o troço da levada que
as servia, foram destruídos pelos trabalhos de reestruturação e ampliação daquela
via rodoviária. Por outro lado, parte daqueles terrenos foram vendidos para
construções residenciais, alterando completamente a fisionomia daquele espaço. Também
um barreiro de grandes dimensões, que ali existia junto das hortas, desapareceu
por completo sem deixar quaisquer vestígios. Apenas algumas árvores de fruto,
que ainda subsistem aqui e além, dão sinal de que ali fervilhou vida intensa
nos tempos heroicos de um passado não muito distante.
Nota
Para melhor alicerçar este
depoimento, foram pedidos documentos escritos aos principais herdeiros da Casa
Grande, mas não foi possível obtê-los, por se desconhecer o seu paradeiro,
admitindo-se mesmo que tenham sido destruídos aquando do processo sucessório.
Assim, os factos descritos baseiam-se, quase todos, na memória do autor.
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